Política, futebol e religião. A sabedoria popular diz que esses são assuntos sobre os quais não se discute, para o bem da convivência. Assim, poupa-se tempo e energia com argumentações que, provavelmente, não levariam a lugar algum – apenas, talvez, provocariam brigas desnecessárias. Essa antiga crença popular pode estar embasada em uma experiência humana amplamente compartilhada e bastante incômoda: a de falar e não ser ouvido; como se o companheiro de conversa não estivesse interessado em absolutamente nada do que ouve, apenas no que ele mesmo dirá em seguida para comprovar a própria ideia. Embora poucas coisas sejam mais irritantes do que se perceber falando com as paredes, a verdade é que qualquer pessoa pode se tornar pouco disposta a ouvir argumentos contrários aos seus, e talvez com uma frequência maior do que consiga notar.
A formação de posicionamentos, ou opiniões, é parte natural e importante do processo de socialização. As pessoas entram em contato com os objetos que fazem parte do seu meio social, sejam eles pessoas, coisas ou ideias, e decidem se gostam ou não deles. Esses posicionamentos podem se referir a aspectos simples do dia a dia, como decidir se gostamos de um tipo de comida, de uma pessoa, de uma forma de se vestir ou de uma banda de rock; e também a questões mais complexas e controversas, como se gostamos do candidato político X ou Y, se nos declaramos favoráveis ou contrários às cotas de acesso ao ensino superior ou se julgamos uma determinada crença religiosa como boa ou ruim. As pessoas não variam apenas nos gostos que possuem, mas também na intensidade do que sentem em relação a esses objetos. E o afeto é justamente o ponto central do que os psicólogos sociais têm chamado de my side bias, ou viés do meu ponto de vista.
Geralmente, quando se fala em opinião, tem-se a ideia de uma crença que uma pessoa possui sobre um assunto qualquer. No entanto, em psicologia social, entende-se que as crenças são apenas um dos aspectos envolvidos em um posicionamento. Junto delas, as pessoas desenvolvem sentimentos, que podem ser positivos ou negativos, e uma tendência a se comportar de maneira coerente com o que elas pensam e sentem. Se as pessoas fossem puramente racionais na compreensão da realidade, seria razoável supor que adquirir crenças novas e mais coerentes sobre um determinado assunto bastaria para provocar uma mudança de opinião. Em certa medida, isso é verdadeiro. As pessoas podem, sim, mudar de ideia quando se deparam com uma nova informação que parece mais lógica do que uma anterior. Entretanto, quando estamos envolvidos afetivamente com uma ideia, essa mudança é muito mais complicada. Quanto mais forte é o afeto associado a uma crença, mais intensamente as pessoas tendem a proteger os próprios pontos de vista e mais dificilmente enxergam lógica em argumentos contrários.
O viés do meu ponto de vista seria uma forma específica de viés de confirmação, já bem conhecido pelos cientistas. Entusiasmado com uma hipótese de pesquisa, um cientista pode, sem perceber, interpretar dados de maneira enviesada para que a sua hipótese inicial seja confirmada; não porque ela corresponda, de fato, à realidade, mas porque ele teria sido incapaz de conduzir a pesquisa objetivamente, protegendo-se de eventuais pontos cegos decorrentes de um envolvimento emocional com a sua hipótese. Bons cientistas criam estratégias para proteger-se desse tipo de viés, já que uma compreensão precisa da realidade é a essência dessa profissão. Na vida cotidiana, porém, as pessoas estão menos preocupadas em perceber o que pode estar impedindo uma compreensão mais acurada da realidade. Uma vez formado um posicionamento, há uma forte tendência a gerar, selecionar e avaliar as informações de uma maneira enviesada, isto é, de forma a reforçar aquilo que as pessoas já acreditam ou defendem.
Essa tendência a proteger o próprio ponto de vista foi testada e confirmada em diversos estudos científicos. Um estudo publicado recentemente testou a habilidade das pessoas em julgarem argumentos lógicos (silogismos) como válidos ou inválidos quando esses argumentos iam ao encontro dos seus posicionamentos prévios sobre o aborto ou, então, quando os contradiziam. Os silogismos eram apresentados e a tarefa do participante era julgar o quanto uma conclusão era válida, considerando que as duas premissas eram sempre verdadeiras. Os participantes tiveram dificuldade em aceitar como válidos os silogismos contrários às suas opiniões, assim como em rejeitar como inválidos os silogismos que confirmavam as suas crenças pessoais. Assim, por exemplo, uma pessoa contrária ao aborto teve mais dificuldade em aceitar como lógica a seguinte conclusão:
Todos os direitos das mulheres devem ser apoiados.
Alguns dos direitos das mulheres são abortos.
Alguns abortos devem ser apoiados.
E também uma dificuldade maior em rejeitar como inválido o seguinte silogismo:
Todos os fetos são seres humanos.
Alguns seres humanos devem ser protegidos.
Alguns dos que devem ser protegidos são fetos.
Os autores concluíram que as pessoas tendem a não enxergar lógica em argumentos lógicos contrários aos seus pontos de vista, assim como a enxergar lógica em argumentos ilógicos coerentes com os seus posicionamentos, e isso pode estar na base das discussões comumente infrutíferas sobre assuntos controversos. Resultados parecidos foram encontrados em outros estudos. Por exemplo, pessoas com posicionamentos políticos de esquerda e de direita tendem a ser igualmente motivadas a evitar contato com as opiniões do grupo divergente. Ainda, as pessoas tendem a julgar as suas próprias teorias como mais verdadeiras do que as teorias de outras pessoas e o nosso cérebro parece processar mais rapidamente opiniões com as quais concordamos, tratando-as como se fossem fatos.
Atualmente, essa tendência a ouvir apenas o próprio lado tem sido discutida também no contexto das notícias falsas, que atraem cada vez mais atenção midiática e científica, devido à sua forte influência política. Além de algumas variações individuais envolvidas no quanto as pessoas estariam vulneráveis a acreditar, ou não, em notícias falsas, a conveniência do conteúdo de uma notícia também parece ser um fator importante. Uma pesquisa recente mostrou que as pessoas têm mais chances de acreditar em notícias falsas quando elas favorecem os seus candidatos políticos preferidos. Em ambientes on-line, onde o usuário é livre para escolher os conteúdos que deseja consumir, as notícias falsas podem ser especialmente atraentes para quem, mesmo sem perceber, busca informações reforçadoras do próprio ponto de vista.
É importante destacar que a percepção enviesada da realidade, embora às vezes inconveniente, é parte inerente à condição humana. Seria inviável se, a cada posicionamento formado, precisássemos conduzir um estudo científico para avaliar objetivamente a sua validade. Assim como seria extremamente cansativo se, a cada nova informação, reformulássemos toda uma forma de pensar sobre os objetos que estão à nossa volta. Os pontos cegos seriam o preço que pagamos por algo que teria sido adaptativo ao longo da evolução humana: a capacidade de processar estímulos rapidamente e formar posicionamentos sem muito esforço, o que acaba favorecendo a construção de uma identidade, a afiliação a grupos e a organização da avalanche de estímulos com os quais temos que lidar diariamente. A essa altura, então, você pode estar se perguntando: se essa é uma tendência humana, haveria solução?
O fato de ser uma tendência natural não significa que não possamos melhorar a nossa percepção sobre a realidade. A própria consciência sobre o viés do meu ponto de vista pode, por exemplo, em situações de diálogo com alguém que pensa diferente, aumentar a disposição para que se deixe o calor emocional de lado e se tente avaliar a lógica de argumentos contrários; ou, ainda, estimular um julgamento crítico sobre a veracidade de uma notícia, com base em outros critérios que não apenas o quanto essa notícia reforça um posicionamento prévio. Partindo do pressuposto de que a nossa cognição é falha e que todos estamos suscetíveis às mais variadas formas de distorções perceptivas, pesquisadores têm discutido e elaborado formas de melhorar a qualidade das discussões sobre assuntos com os quais as pessoas costumam se envolver emocionalmente. Sobre política, futebol e religião, discute-se, sim; desde que as pessoas estejam dispostas a criar estratégias para se protegerem das armadilhas de suas mentes imperfeitas.
Como citar este texto:
Carvalho, N. M. (2018). O que você diz não me convém: o ‘viés do meu ponto de vista’ e a dificuldade para ouvir o outro lado [Blog post]. Retrieved from https://www.l2ps.org/blog/o-que-voc%C3%AA-diz-n%C3%A3o-me-conv%C3%A9m-o-vi%C3%A9s-do-meu-ponto-de-vista-e-a-dificuldade-para-ouvir-o-outro-lado
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