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A natureza humana cultivada pela agricultura

Recentemente, argumentei que brigas de torcida e guerras (para citar apenas alguns exemplos) possuem algo em comum. Ambas são causadas pela tendência ao paroquialismo, que faz as pessoas cooperarem com o próprio grupo, mas serem especialmente agressivas e aversivas com quem vem de fora. Evoluímos ao longo de milhões de anos como animais formadores de alianças, possivelmente porque isso era útil na disputa por recursos com outros grupos humanos lutando por seu lugar ao sol. Isso sugere que o passado do gênero Homo como caçador-coletor tribal não foi uma Era de Ouro idílica onde todos eram pacíficos, igualitários e dividiam uvas dançando macarena em torno de fogueiras num fim de tarde.


Os seres humanos nunca foram anjos de candura, mas pesquisadores discordam quanto ao momento em que o paroquialismo e as guerras se intensificaram. Como defendi no texto anterior, as evidências apontam para uma natureza humana paroquial moldada durante o Pleistoceno, esse período basicamente formado por grupos de caçadores-coletores, tendo havido desde então uma progressiva diminuição da violência até hoje. Essa é a linha de evidência apresentada por Steven Pinker em Os Anjos Bons da Nossa Natureza, que é rebatida por pesquisadores que questionam tanto essa visão de natureza humana quanto que caçadores-coletores seriam mais violentos. Sim, eles poderiam ser muito violentos, mas a violência na forma dos estados de guerra atuais teriam surgido como resultado direto das pressões seletivas de um novo nicho social e ecológico que surgia há 14 mil anos e que mudaria o mundo: a agricultura.


Ao longo deste texto vou examinar alguns dos argumentos que conduzem à conclusão de que a agricultura não possibilitou apenas a formação de impérios e a mudança permanente de grande parte do ecossistema, mas também criou uma avalanche de mudanças que nos tornou ainda mais formadores de panelinha, cooperativos, agressivos e sexualmente dimórficos.


Os modos de vida nômade e sedentário

Em Os Anjos Bons da Nossa Natureza, o psicólogo Steven Pinker mergulha nas evidências de que as sociedades humanas eram mais violentas antes da criação do Estado e de um aparato jurídico e dos valores iluministas, como a democracia. Por exemplo, em relação às sociedades tradicionais que viveram na América pré-colombiana, há mais sinais de morte por homicídio em ossadas de caçadores-coletores do que em ossadas de indivíduos que viveram nos grandes impérios ameríndios (clique para ver as respostas de Pinker aos mais comuns argumentos contra sua tese). Apesar do progresso ao longo da história, a psicologia dos humanos contemporâneos continua sendo a mesma desses violentos caçadores-coletores do passado. A maior parte da história do gênero Homo, o que inclui o H. sapiens e outros ancestrais já extintos, se desenrolou sob as pressões seletivas de uma vida nômade, baseada na caça e na coleta. O novo modo de vida sedentário, baseado na domesticação de animais e plantas só tem 14 mil anos, o que não teria sido tempo suficiente para modificar filogeneticamente a psicologia humana.


A vida nômade

Alguns pesquisadores, como o antropólogo Agustín Fuentes, discordam. Quer dizer, eles aceitam as evidências que sugerem que a violência hoje é relativamente menor que a do passado, mas para eles a psicologia humana não permaneceu a mesma desde então. Esses 14 mil anos de agricultura teriam modificado tanto o ambiente que essas mudanças já teriam voltado como novas pressões seletivas suficientes para terem mudado algo na nossa natureza. Por exemplo, 14 mil anos foi tempo suficiente para domesticar uma variada quantidade de espécies, incluindo microorganismos causadores de doenças que não existiam antes da vida nômade; para causar modificações esqueléticas por causa da nova dieta e novos modos de preparo de comida, como alterações na mandíbula.


Acumulação de recursos causa explosão demográfica

Basta comparar os dois modos de vida. Uma sociedade nômade não tem como acumular recursos. Para se alimentar, as pessoas dependem dos lugares onde elas passam durante suas viagens. Se passar por um local com animais bons para caçar, há carne, senão, é preciso localizar raízes ou árvores que dão frutos comestíveis. Além de não possibilitar a acumulação de recursos, esse modo de vida é um poderoso limitador demográfico, ou seja, não se acumula comida suficiente para alimentar grupos muito grandes, então a fertilidade se mantém estável. Sociedades sedentárias, que dominaram a agricultura, podem explodir demograficamente por causa do aumento na oferta de alimento (é como a explosão demográfica de escorpiões atualmente no Brasil: aumente a quantidade de baratas para escorpiões se alimentarem e ofereça um clima confortável que esses bichos se reproduzem como uma praga).


Ruínas de impérios construídos graças aos excedentes e monopólios originários da agricultura

Essa falta de excedente nas sociedades de caçadores-coletores impede também que haja hierarquias rígidas, pois é muito difícil monopolizar recursos e subir ao comando junto com subordinados. Essa vida de subsistência gera maior igualdade, maior cooperação e mais distribuição de alimento -- até porque tribos nômades com muitos trapaceiros que não caçam e não cooperam perecem rapidamente.


Se os recursos aumentam, os conflitos crescem


Em alguns lugares, tribos sedentárias usam armas de fogo mas os homens pintam a face para intimidar como antigos guerreiros

A impossibilidade de acumular muito status social também diminui conflitos porque ninguém vai acumular recursos o suficiente para suscitar competição. Consequentemente, ninguém vai precisar se preocupar tanto para proteger suas posses porque as pessoas têm mais ou menos as mesmas coisas. Com a agricultura a produção de alimento aumentou, surgiu a possibilidade de monopolizar recursos e consequentemente veio a necessidade de proteger a terra cultivada de pessoas querendo roubar. Esse acúmulo deu início à desigualdade social em níveis mais elevados do que se conhecia antes. O gargalo para a sobrevivência aumentou porque, curiosamente, o aumento da produção de alimento ocasionou também uma maior diminuição do acesso a esse alimento. Você poderia dar sorte de ter chegado primeiro numa terra fértil, ou você poderia ter um exército mais forte, mais armas, e mais chances de tomar o território de alguém. Feito isso, às vezes era necessário matar a população local, fazer prisioneiros, fazer escravos. Ou talvez desse para absorver a população local em troca de tributos. Essa é basicamente a história de todo grande Império, dos persas à Alexandre, de Genghis Khan aos Estados Unidos.


A agricultura pode ter intensificado o dimorfismo sexual

Os papéis sexuais também se modificaram na passagem de um estilo nômade para o modo de vida sedentário. Existem dados mostrando que sociedades que desenvolveram a agricultura há mais tempo, atualmente possuem menor inserção da mulheres no mercado de trabalho, menos mulheres no parlamento e etc. Isso pode indicar não só que o histórico de crenças associadas às práticas econômicas de uma sociedade pode impactar hoje, mas também que o desenvolvimento da agricultura pode também ter moldado homens e mulheres com diferentes predisposições psicológicas -- certamente pequenas em magnitude, mas mesmo assim tendo importantes reflexos na sociedade hoje.


Por exemplo, no caso dos caçadores-coletores, ambos os sexos precisam cooperar na obtenção de alimento. Essa é outra limitação da fertilidade: além da pequena quantidade de alimento restringir a fertilidade, a maior participação da mulher em atividades produtivas pode ter diminuído a aspiração de ser mãe e o tempo para se dedicar à prole (um efeito semelhante ao que vemos nas sociedades atuais). Tribos sedentárias, por outro lado, trabalham muito mais, mas também produzem muito mais alimento. Com a explosão demográfica, as mulheres passaram a ficar a maior parte da vida grávidas e ocupadas criando filhos, enquanto os homens se especializaram cada vez mais no trabalho contínuo e excruciante de preparar o solo para o plantio, e de proteger a território de invasores.


O aumento da densidade populacional foi o primeiro passo de uma avalanche de modificações na cultura e biologia humana

De fato, existem evidências de que o estado de guerra como conhecemos hoje emergiu na história humana junto com o aumento da densidade populacional, da estratificação social, da acumulação de recursos, e do sedentarismo/agricultura. Alguns pesquisadores acreditam que estado de guerra e guerra pura e simples são diferentes. Por exemplo, grupos humanos brigando por acesso a comida seria guerra. Agora, quando duas ou mais coalizões entram em conflito pela defesa de diferentes valores, por pertencimento a um grupo em detrimento de outro, estamos falando de um estado de guerra. É debatível se no Pleistoceno já existiam estados de guerra, mas sabe-se que passaram a existir a partir da agricultura. De qualquer forma, para aqueles que concordam com essa distinção, fica claro que o estado de guerra é algo tipicamente humano, enquanto a guerra em si, não.


A conexão da vida sedentária com os estados de guerra é que viver com uma crescente população cercada e fixa passou a forjar laços que não existiam antes. As pessoas não apenas conviviam e andavam juntas, elas trabalhavam duro juntas, pegavam juntas em armas para proteger seu “Paraíso”. Não por acaso, é nesse momento que surgem as religiões que falam do mundo como um jardim dado pelos deuses aos humanos. Também não é por acaso que essas religiões caras a esses fazendeiros tivessem um código moral, que tivessem divindades oniscientes que liam pensamentos e julgavam moralmente o comportamento humano.


Essas crenças emergiram diante da necessidade de controlar uma população muito maior do que se tinha conhecido até então na história humana. Em outras palavras, o aparecimento desse equipamento metafísico moral surge para impedir que essas pessoas se matem, que roubem as propriedades umas das outras e que, mais do que tudo, aprendam a considerar os próximos como aliados e os forasteiros como inimigos mortais.


Esse “confinamento” pode ter forjado um senso de identidade e de pertencimento inviável num mundo nômade, cujos riscos mais rotineiros eram encontrar animais selvagens ou cruzar com tribos rivais. Agora, acrescente nessa equação um mundo mais populoso, onde a cada esquina poderia ter um campo cercado com pessoas trabalhando. A desigualdade, rivalidade, proximidade e superpopulação desse tipo de cenário pode ter contribuído para aumentar os conflitos em número e em intensidade, isto é, criou verdadeiros estados de guerra. O inimigo agora é outro, não mais as intempéries da natureza selvagem, mas outros grupos de seres humanos.


E essa pode não ter sido uma mudança apenas cultural, mas biológica também. Assim como minhocas modificam o subsolo com suas excreções, criando novas características que retornam como pressão seletiva sobre as próprias minhocas, o aumento da capacidade dos seres humanos de modificar o ambiente criou novas pressões seletivas para sua própria evolução. É possível que esse ambiente inicialmente mais hostil possibilitado pela agricultura tenha exercido pressão sobre o nível de agressividade e paroquialismo. Em outras palavras, pessoas mais capazes de cooperar com seu próprio grupo e de reagir de maneira agressiva a forasteiros sobreviveram para contar história. Essa pressão seletiva pode ter sido especialmente intensa entre homens, que estavam sempre ocupados com produção de recursos, ostentação de status social e proteção, enquanto as mulheres usavam seu tempo cuidando dos inúmeros filhos que esse novo cenário viabilizava.


Mas essas novas pressões seletivas provavelmente deixaram os seres humanos mais cooperativos também, pelo menos com pessoas da própria panelinha. O homem ideal deveria ser aquele capaz de acumular muitos recursos, ter muitos filhos e muitas esposas (sim, a poliginia provavelmente passou a ser uma estratégia reprodutiva comum). A cooperação seria fundamental porque ajudaria a manter essa riqueza com a proteção de aliados, que por sua vez geraria condições de unir o grupo contra ameaças externas. Ou seja, níveis elevados de cooperação e de agressividade (paroquialismo) co-evoluíram, ou pelo menos se intensificaram nesse ambiente via seleção natural e seleção sexual.


Conclusão

O objetivo deste texto não foi mostrar que a agricultura moldou sozinha o ser humano, especificamente seu paroquialismo. Primatas são naturalmente paroquiais porque formar coalizões é sempre melhor sendo uma espécie frágil como a nossa. Mas a agricultura provavelmente intensificou isso, pelo menos é o que alguns antropólogos defendem. Tanto que os chamados estados de guerra -- guerras muito intensas motivadas por motivos mais abstratos -- possivelmente não existiam pré-sedentarismo. As marcas da agricultura se fazem sentir hoje na cultura, no corpo e no comportamento. Talvez na própria natureza humana.


Como citar este texto:

Novaes, F. C. (2019). A natureza humana cultivada pela agricultura [Blog post]. Retrieved from https://www.l2ps.org/blog/a-natureza-humana-cultivada-pela-agricultura

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